PARECER TÉCNICO PGR se manifesta favorável à inconstitucionalidade de emenda que regulamenta a vaquejada

A Procuradora-Geral da República considerou a vaquejada inconstitucional e afirmou que “maus-tratos intensos a animais são inerentes às vaquejadas”.

VAQUEJADA(Foto: Adriano Vizoni/Folhapress)

A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, emitiu um parecer técnico por meio do qual se manifestou favorável à inconstitucionalidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 96, que regulamenta a vaquejada, em resposta a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de autoria do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal. Dodge recomendou ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) também se posicione e declare a inconstitucionalidade da PEC em questão.

“Maus-tratos intensos a animais são inerentes às vaquejadas, indissociáveis delas, pois, para derrubar o boi, o vaqueiro deve puxá-lo com força pela cauda, após torcê-la com a mão para maior firmeza. Isso provoca luxação das

vértebras que a compõem, lesões musculares, ruptura de ligamentos e vasos sanguíneos e até rompimento da conexão entre a cauda e o tronco (a desinserção da cauda, evento não raro em vaquejadas), comprometendo a medula espinhal. As quedas perseguidas no evento, além de evidente e intensa sensação dolorosa, podem causar traumatismos graves da coluna vertebral dos animais, causadores de patologias variadas, inclusive paralisia, e de outras partes do corpo, a exemplo de fraturas ósseas. Não há possibilidade de realizar vaquejada sem maus-tratos e sofrimento profundo dos animais”, escreveu a procuradora.

A emenda foi proposta logo após o STF atestar, em 6 de outubro de 2016, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983, a inconstitucionalidade da lei 15299 de 2013, que classifica a vaquejada como atividade esportiva no Ceará.

Logo após a decisão do Supremo, que estabeleceu a inconstitucionalidade da lei da vaquejada no estado do Ceará com base na dor e no sofrimento causado aos animais, duas legislações tramitaram no Congresso. A primeira, denominada PEC (Proposta de Emenda à Constituição), tinha como objetivo promover uma alteração na Constituição, e a outra, a PLO (Projeto de Lei Ordinária), foi produzida para que fosse possível criar uma lei que autorizasse a vaquejada, o rodeio e qualquer outra manifestação cultural envolvendo exploração animal no Brasil.

O referido Projeto de Lei Ordinária transformou-se, então, na lei federal nº 13364, de novembro de 2016 – que estabelece que rodeio e vaquejada são expressões artístico-culturais e eleva vaquejada e rodeio à condição de Manifestação da Cultura Nacional e de Patrimônio Cultural Imaterial -, e a já citada Proposta de Emenda à Constituição passou a ser a PEC nº 96, que inseriu ao artigo 225 da Constituição Federal o paragrafo 7º, que diz que se existir uma lei garantindo o bem-estar animal e outra alegando que vaquejada e similares são expressões artístico-cultural e manifestações culturais nacionais e de patrimônio cultural imaterial, e essa lei existe – é a 13364 de 2016 -, todas essas atividades envolvendo entretenimento humano com exploração de animais estão autorizadas e excepcionadas da proibição contida no inciso VIII do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição, que estabelece que não pode ser praticada a crueldade contra animais.

Na semana seguinte à validação da emenda, o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal protocolou, no dia 13 de junho de 2017, a ADI nº 5728, solicitando o reconhecimento da inconstitucionalidade da PEC 96. Após ser protocolada, o STF abriu vistas para determinadas pessoas e entidades e também à AGU e à Procuradoria Geral da Republica (PGR). Tal pedido de vistas, inclusive, foi o que permitiu que a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, se manifestasse, por meio de parecer técnico, para que os ministros do STF sejam subsidiados e para afirmar que a emenda a constituição numero 96 é inconstitucional por ferir o inciso IV do paragrafo 4º do artigo 60 da Constituição, que estabelece o regime jurídico para as emendas à Constituição e proíbe que haja emenda à Constituição que retire ou minimize direitos e garantias fundamentais.

Entre os direitos fundamentais resguardados pela Constituição Federal, está o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, reconhecido como direito fundamental de terceira dimensão, isso é, que é comum a todos. E a partir do momento que os animais são tratados com crueldade, o meio ambiente fica desequilibrado, e o direito ao meio ambiente equilibrado deixa de existir.

No parecer, a PGR pede que o STF decrete de fato a inconstitucionalidade da emenda por vício material, uma vez que afrontou o assunto constitucional que proíbe a crueldade em face de quaisquer animais. A recomendação da procuradoria é feita com base na última decisão que o STF tomou envolvendo este tema, na ADI 4983, que reconheceu a inconstitucionalidade da lei da vaquejada no estado do Ceará, como em outras ADIs envolvendo a farra do boi, rinha de galo, entre outras.

O advogado Francisco José Garcia Figueiredo, professor da UFPB, coordenador do Núcleo de Extensão em Justiça Animal da universidade e presidente da Comissão de Direito Animal da OAB-PB, explica que o parecer de Raquel Dodge subsidia os ministros do Supremo Tribunal Federal, dando a eles maior lastro de assuntos e matérias a serem pesquisados para que uma decisão seja tomada a respeito do assunto. “Então eles [os ministros do STF] escutam a AGU, a PGR, pessoas ou entidades que possam se candidatar ao “amigos da corte”, que são entidades de proteção animal de abrangência nacional que podem se inserir nesse processo para ajudar o STF na decisão, subsidiando-o também com assuntos que podem trazer mais conhecimento acerca da matéria a ser debatida e resolvida pelo STF”, afirma.

Ao emitir uma opinião pessoal sobre o caso, Figueiredo afirmou concordar com o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e com o parecer de Raquel Dodge. “De fato, o Congresso Nacional se reuniu para votar essa PEC em uma tramitação nunca vista antes. De todas as emendas à Constituição existentes até hoje, essa foi a que tramitou de maneira mais célere, de modo mais rápido na casa congressual. Então o Congresso Nacional fez tramitar e aprovou uma emenda que fere de morte aquela determinação contida no inciso 7 do parágrafo 1º do artigo 225 de nossa Constituição Federal, que proíbe a crueldade em face de qualquer animal”, diz.

O advogado reitera que a crueldade é inerente à vaquejada, e também ao rodeio, e que isso é atestado por pareceres de médicos veterinários e cientistas. “Não é uma lei que diz que a vaquejada é patrimônio imaterial nacional, é expressão artístico-cultural, que vai retirar a dor e o sofrimento dos animais. Então, lei nenhuma, tampouco a Constituição, tem o condão de, por intermédio de determinações, por meio de palavras, retirar a dor e o sofrimento dos animais. Nós temos que avaliar o que na prática acontece com os animais e verificarmos se realmente aquilo promove ou não promove crueldade em face deles. Então, nesse sentido, a minha opinião é que a emenda à Constituição nº 936 de 2017 é inconstitucional por ferir direito constitucional de terceira dimensão, qual seja o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, exatamente porque vaquejada, rodeio, buldogue, prova de laço, rinha de galo e de cachorro, todas essas manifestações que envolvem entretenimento humano em face de animais, promovem crueldade e, assim, dor e sofrimento para esses seres. Então, é inconstitucional”, reforça.

A mestra em Direito Ambiental, pesquisadora e autora de livros sobre direitos animais, Samylla Mól, relembra que ao opinar pela procedência do pedido para que fosse declarada a inconstitucionalidade da Proposta de Emenda à Constituição, Raquel Dodge ressaltou que a PEC “colide com as normas constitucionais de proteção ao meio ambiente e à fauna”.

Samylla argumenta ainda que, no parecer, a procuradora “defende que o conflito aparente entre a vedação de tratamento cruel aos animais e a proteção das manifestações culturais e práticas esportivas resolve-se pelo fato de que não é possível legitimar a imposição de sofrimento aos animais à luz do argumento de que se trata de cultura” e que “essa atividade, assim como outras que baseiem-se na submissão de animais à crueldade, devem ser proscritas”.

De acordo com a pesquisadora, “o assunto vaquejada que, até então, era motivo de indignação entre os que defendem a proteção jurídica dos animais, agora ganha ares de esperança”.

A advogada da ANDA, Letícia Filpi, que é vice-presidente da Associação Brasileira das Advogadas e Advogados Animalistas e membro Grupo de Estudos em Direito Animalista (GEDA-USP), também defende a inconstitucionalidade da PEC 96. “Conforme a própria Raquel Dodge colocou na peça dela, a emenda quer contornar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade já proferida pelo STF em relação à vaquejada. Quando o Supremo afirmou que a vaquejada é inconstitucional, ele listou todas as atividades semelhantes. Então qualquer atividade que for cruel aos animais, seja ela considerada cultural ou não, é inconstitucional”, diz Letícia.

A advogada afirma ainda que outra razão para a PEC ser considerada inconstitucional é o fato de ela passar por cima do sofrimento animal com o intuito de determinar que os animais não sentem dor durante a vaquejada. “Aqui na PEC 96, diz o seguinte: ‘não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizam animais desde que sejam manifestações culturais’. Mas não dá para a lei determinar o que é cruel ou não, porque o que determina o que é cruel ou não é a natureza da senciência animal. O animal como um sujeito de direitos, por ter essa capacidade de sentir dor, ele sente pela própria natureza dele. Ele sente dor e nenhuma lei pode mudar isso. Mas a lei foi usada para determinar que o animal não sente dor e que, por isso, a vaquejada não é cruel. O fato de ser manifestação cultural tira completamente a capacidade do animal de sentir dor? É um absurdo, isso é completamente esdrúxulo”, explica.

Letícia citou ainda o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o princípio do não retrocesso ambiental, citados pela ação do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal. “Além disso, consta na emenda a seguinte frase: ‘devendo ser regulamentas por leis específicas que assegurem o bem-estar dos animais envolvidos’. Essa frase já se entrega, porque se você precisa de uma lei para regulamentar, para assegurar o bem-estar, é porque a atividade não assegura o bem-estar, portanto ela é cruel”, diz a advogada.

Ainda sobre o princípio do não retrocesso ambiental, Letícia afirma que “foi bom o Fórum Nacional e a Raquel Dodge terem falado disso” porque, segundo a advogada, “quando um bem ambiental é assegurado, não é admitido retrocesso”. Ela lembra, entretanto, que tais retrocessos acontecem frequentemente, como já ocorreu com o código florestal e, agora, com os animais, por causa da emenda 96. Em relação ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, Letícia aponta a existência de uma polêmica sobre tal questão ser considerada ou não direito fundamental devido ao fato do meio ambiente não estar expresso no artigo 5º da Constituição. Direitos fundamentais são protegidos pelo artigo 60 da Constituição Federal, que define que uma emenda que retire tais direitos não pode ser proposta.

“O meio ambiente equilibrado não está expresso no artigo 5º, mas ele é uma decorrência do direito à vida. Porque o direito à vida, do artigo 5º, assegura a vida digna, e se você não tem um meio ambiente equilibrado, você não tem dignidade. Então os direitos de terceira geração, que são os direitos difusos, são uma decorrência do direito à vida”, afirma a advogada. “Porque a constituição é dividida em três partes, ela é a concretização dos ideais burgueses da Revolução Francesa. Primeiro você teve o direito à liberdade assegurado, com o artigo 5º, você teve o direito à igualdade assegurado nos direitos sociais, trabalhistas, etc, e agora você tem a fraternidade, você assegura com os direitos de terceira geração, que são os direitos difusos e coletivos, dentre eles do meio ambiente. Eu entendo que esses direitos estão inclusos no artigo 5º sim, por que do que adianta preservar o direito à vida se a vida não é digna?”, completa.

Segundo a advogada, a emenda é inconstitucional devido a três argumentos. “O argumento do não retrocesso – estão desrespeitando um bem ambiental, que são os animais -, o da afronta ao bloco de constitucionalidade do artigo 60 – afrontaram o direito à vida digna -, e o terceiro argumento, que a própria emenda constitucional argumenta que a vaquejada pode ser cruel, porque ela pede uma norma infraconstitucional para garantir o bem-estar dos animais”, reitera.

O parecer da Procuradora-Geral da República foi recebido com grande alegria pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, que entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade, segundo Vânia Plaza Nunes, médica veterinária e diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal. Entre os posicionamentos acertados de Dodge, de acordo com Vânia, está o reconhecimento do direito do Fórum Nacional de entrar com o questionamento sobre a alteração constitucional. Vânia lembra também que Raquel foi a segunda Procuradora-Geral da República que reconhece a vaquejada como uma prática cruel.

“O descritivo do parecer dela foi muito importante porque resgata muitas coisas relevantes do ponto de vista dos maus-tratos aos animais, dos riscos que estão envolvidos, e do direito que é dado a nós, enquanto representantes de várias entidades de proteção e defesa animal, de estarmos questionando as alterações que foram feitas do ponto de vista da Constituição para beneficiar única e exclusivamente alguns empresários que querem continuar mantendo os animais subjugados e sofrendo maus-tratos de forma permanente, como se isso fosse uma prática cultural aceitável no século XXI”, explica Vânia.

A veterinária afirma ainda que, devido ao satisfatório parecer de Raquel Dodge, há uma esperança de que o Supremo Tribunal Federal decida pela inconstitucionalidade da emenda. “O parecer dela foi muito bom, a gente é muito grato por esse parecer, ele é bastante consistente, nós temos bastante confiança que o Dias Toffoli, que é quem dará prosseguimento a isso, que pode acolher ou não essa determinação, mesmo ele tendo votado a favor da vaquejada na época daquele caso do Ceará, nós acreditamos que temos chance sim e vamos fazer uma grande mobilização e contamos com a nossa sociedade, que protege e defende os animais ou que tem bons princípios para que, de fato, os nossos ministros do Supremo Tribunal Federal julguem realmente inconstitucional a mudança proposta pela emenda constitucional que tira as práticas de rodeio e vaquejada da proteção do artigo 225”, conclui.

Confira na íntegra o parecer técnico da Procuradora-Geral da República clicando aqui.

FONTE: http://www.anda.jor.br

 

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